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COMUNICADO DE IMPRENSA

O Conselho de Escolas Médicas Portuguesa (CEMP), subscreve na íntegra o texto anexo, redigido pelo Senhor Professor Altamiro Pereira, Diretor da FMUP.

Lisboa, 11 de Março de 2020

Prof. Fausto J. Pinto

Presidente do CEMP


Carta aberta ao Conselho Nacional de Saúde Pública: um contributo pessoal acerca da epidemia de Covid-19, em Portugal

Quero começar por reconhecer a enorme competência e resiliência que os inúmeros profissionais de saúde têm demonstrado face à recente epidemia de Covid-19 tanto nos hospitais do Sistema Nacional de Saúde (SNS) como na comunidade. Na verdade, podemos desde já estar profundamente gratos a todos estes profissionais e compatriotas. E, no entanto, a epidemia continua a ameaçar-nos a um nível físico, social, político e económico com uma força raramente vista até hoje!

Quero também sublinhar a enorme dedicação e atenção do Governo, seja do nosso Primeiro- Ministro, do Ministério da Saúde ou da Direção-Geral da Saúde. E, no entanto, todos os dias aparecem novos casos de infeção, a maioria no Norte, e embora a mortalidade ainda não nos assuste esta será muito em breve uma realidade, tal como o é em outros países do Mundo!

Dito isto, não posso, como doutorado em Epidemiologia e Saúde Pública, pela Universidade de Dundee, Reino Unido, como fundador e coordenador de uma unidade de investigação financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), o Centro de Investigação de Tecnologias e Sistemas de Informação em Saúde (CINTESIS), como ex-diretor do Departamento de Medicina da Comunidade, Informação e Decisão em Saúde da FMUP e, sobretudo, como atual diretor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, não posso, digo, deixar de partilhar publicamente algumas das preocupações que me vêm cada vez mais assaltando nos últimos dias.

A minha principal preocupação tem que ver com a limitada capacidade de resposta do SNS para enfrentar uma sobrecarga de procura. Se as dificuldades do SNS já eram evidentes antes da epidemia por Covid-19 (algo que se verifica, por exemplo, na dificuldade de manter urgências abertas e funcionais de alguns serviços hospitalares1,2), e se a Linha de Saúde SNS24 já não consegue dar resposta a todas as chamadas neste preciso momento3, é de esperar o pior – ou seja, uma situação mais próxima do colapso – com o passar do tempo e subsequente aumento exponencial do número de casos de infeção Covid-19. Nesse sentido, atuar rapidamente de forma preventiva e efetiva parece-me ser uma absoluta necessidade nesta fase de evolução da epidemia. De facto, embora o enfrentamento de uma epidemia destas proporções e num mundo de tal forma globalizado seja algo inédito para todos nós, o facto de os primeiros casos de infeção Covid-19 em Portugal terem sido diagnosticados mais tardiamente que na maioria dos restantes países europeus abre-nos uma janela de oportunidade para implementarmos medidas efetivas de forma preventiva.

É ilusório pensar que os próximos dias/semanas não trarão consigo muitos mais novos casos de infeção Covid-19. Nesse sentido, vale a pena olhar para os dois países com um maior número de casos confirmados de infeção e para o modo como foram capazes de responder à mesma. Na China, uma vez reconhecida a magnitude do problema, rapidamente foram colocadas em prática medidas de quarentena cuja efetividade é hoje por demais notória. De facto, Wuhan começa a voltar à normalidade4, Macau já não tem novos casos há mais de um mês5, e em território chinês teme-se agora os casos importados6! Já a Itália demorou mais tempo a tomar medidas mais restritivas, agindo maioritariamente de forma reativa à medida que o número de novos casos disparava (e com os graus de liberdade inerentes às democracias). No final, Itália acabou por ter de decretar quarentena, mas quando o fez já mais de 9000 pessoas tinham sido infetadas e mais de 400 tinham morrido7. Acresce que nos hospitais italianos, já há relatos da necessidade de fazer opções relativamente a quem tratar8, e o descontrolo italiano foi parte da causa da rápida disseminação da infeção a outros países europeus.

Neste sentido, e uma vez mais, o timing para adoção das inevitáveis medidas mais restritivas poderá ter importantes consequências. Na verdade, é possível fazê-lo agora e prevenir ao máximo o número de novos casos de infeção, ou é possível manter a atitude que tem sido adotada de apenas atuar quando surgem novos casos. No entanto, a Itália mostra-nos que este último caminho pode revelar-se demasiadamente perigoso tanto em termos humanos como em termos socio-económicos.

Em suma, no dia em que o Conselho Nacional de Saúde Pública irá reunir, em Lisboa, e tendo em conta que a sua voz será muito importante para o aconselhamento das autoridades de saúde e do governo português, quero alertar, publicamente, para a eventual necessidade de se virem a tomar, com urgência, medidas mais restritivas que possam ainda vir a conter esta grave pandemia!

Bem sei que a esta data a evidência subjacente à frieza dos números e dos critérios epidemiológicos até agora conhecidos não justificará, neste preciso momento, a tomada de

medidas mais draconianas em Portugal. Contudo, esta epidemia está diariamente a pôr em causa os velhos manuais da saúde pública, pois as suas interações com o mundo físico e cultural de hoje não têm qualquer semelhança com as que existiram no passado aquando de outras pandemias víricas. E, se até há bem pouco tempo a nossa sociedade debatia com ardor os prós e contras da eutanásia, hoje deverá estar unida e empenhada no combate a uma ameaça bem mais real e urgente à nossa sustentabilidade como comunidade.

Na verdade, por mais problemas sociais ou prejuízos económicos que venham a existir, no imediato – face às eventuais medidas de contenção que urge serem tomadas –, estes serão certamente bem menores do que aqueles que poderão advir dentro de 2 a 4 semanas quando enfrentarmos o pico da epidemia, já com um SNS exaurido e uma população desamparada e desiludida!

Porto, 11 de Março de 2020

Altamiro da Costa Pereira

Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

1 https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/urgencias-e-cirurgias-encerradas-no-alentejo-por-falta-de-medicos

2 https://eco.sapo.pt/2019/06/20/quatro-maiores-hospitais-de-lisboa-vao-fechar-urgencias-para-gravidas-no- verao/

3 https://www.dn.pt/pais/linha-sns24-nao-atendeu-mais-de-metade-das-chamadas-segunda-feira-11909093.html

4 https://www.publico.pt/2020/03/11/mundo/noticia/coronavirus-empresas-wuhan-autorizadas-retomar- gradualmente-actividade-1907230

5 https://www.scmp.com/news/hong-kong/health-environment/article/3074025/macau-discharges-last- recovered-coronavirus

6 https://edition.cnn.com/2020/03/05/asia/china-coronavirus-imported-cases-overseas-intl-hnk/index.html

7 https://www.aljazeera.com/news/2020/03/italy-coronavirus-lockdown-200310085004374.html

8 https://observador.pt/2020/03/10/em-italia-os-hospitais-estao-a-beira-do-colapso-e-os-medicos-tem-de- escolher-quem-tratar/